A data
de sua morte, descoberta por historiadores no início da década de 1970, motivou
membros doMovimento
Negro Unificado contra a Discriminação Racial, em um congresso
realizado em 1978, no contexto da Ditadura Militar Brasileira, a elegerem a
figura de Zumbi como um símbolo da luta e resistência dos negros escravizados
no Brasil, bem como da luta por direitos que seus descendentes reivindicam.
Com a
redemocratização do Brasil e a promulgação da Constituição de 1988,
vários segmentos da sociedade, inclusive os movimentos sociais, como o
Movimento Negro, obtiveram maior espaço no âmbito das discussões e decisões
políticas. A lei de preconceito de raça ou cor (nº 7.716, de 5 de janeiro de
1989) e leis como a de cotas raciais, no âmbito da educação superior, e,
especificamente na área da educação básica, a lei nº 10.639, de 9 de janeiro de
2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura
Afro-brasileira, são exemplos de legislações que preveem certa reparação aos
danos sofridos pela população negra na história do Brasil.
A
figura de Zumbi dos Palmares é especialmente reivindicada pelo movimento negro
como símbolo de todas essas conquistas, tanto que a lei que instituiu o dia da
Consciência Negra foi também fruto dessa reivindicação. O nome de Zumbi,
inclusive, é sugerido nas Diretrizes Curriculares Nacionais para
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africanacomo personalidade a ser abordada nas
aulas de ensino básico como exemplo da luta dos negros no Brasil. Essa sugestão
orienta-se por uma das determinações da lei Nº 10.639, que diz no Art. 26-A,
parágrafo 1º: “O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra
brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à
História do Brasil.”
A
despeito da comemoração do Dia da Consciência Negra ser no dia da morte de
Zumbi e do que essa figura histórica representa enquanto símbolo para
movimentos sociais, como o Movimento Negro, há muita polêmica no âmbito
acadêmico em torno da imagem de Zumbi e da própria história do Quilombo dos
Palmares. As primeiras obras que abordaram esse acontecimento histórico, como
as de Edison Carneiro (O
Quilombo dos Palmares, Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 3a ed., 1966), de Eduardo Fonseca Jr. (Zumbi dos Palmares, A
História do Brasil que não foi Contada. Rio de Janeiro: Soc. Yorubana
Teológica de Cultura Afro-Brasileira, 1988) e de Décio Freitas (Palmares, a guerra dos escravos. Porto Alegre: Movimento, 1973),
abriram caminho para a compreensão da história da fundação, apogeu e queda do
Quilombo dos Palmares, mas, em certa medida, deram espaço para o uso político
da figura de Zumbi, o que, segundo outros historiadores que revisaram esse
acontecimento, pode ter sido prejudicial para a veracidade dos fatos.
Um dos
principais historiadores que estudam e revisam a história do Quilombo dos
Palmares atualmente é Flávio dos Santos Gomes, cuja principal obra é De
olho em Zumbi dos Palmares: História, símbolos e memória social (São Paulo: Claro Enigma, 2011).
Flávio Gomes procurou, nessa obra, realizar não apenas uma revisão dos fatos a
partir do contato direto com as fontes do século XVI e XVII, mas também
analisar o uso político da imagem de Zumbi. Segundo esse autor, o tio de Zumbi, Ganga
Zumba, que chefiou o quilombo e, inclusive, firmou tratados de
paz com as autoridades locais, acabou tendo sua imagem diminuída e pouco
conhecida em razão da escolha ideológica de Zumbi como símbolo de luta dos
negros.
Além
dessa polêmica, há também o problema referente à própria estrutura e proposta
de resistência dos quilombos no período colonial. Historiadores como José
Murilo de Carvalho acentuam que grandes quilombos, como o de Palmares, não
tinham o objetivo estrito de apartar-se completamente da sociedade
escravocrata, tendo o próprio Quilombo dos Palmares participado do tráfico e do
uso de escravos. Diz ele, na obra Cidadania no Brasil: “Os
quilombos que sobreviviam mais tempo acabavam mantendo relações com a sociedade
que os cercava, e esta sociedade era escravista. No próprio quilombo dos
Palmares havia escravos”. (CARVALHO, José Murilo de. Cidadania
no Brasil. O longo Caminho. 3ª
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 48).
As
polêmicas partem de indagações como: “Se Zumbi, que foi líder do Quilombo de
Palmares, possuía escravos negros, a noção de luta por liberdade nesse contexto
era bem específica e não pode colocá-lo como símbolo de resistência contra a
escravidão”. A própria história da África e do tráfico negreiro transatlântico
revela que grande parte dos escravos que a coroa portuguesa trazia para o
Brasil Colônia era comprada dos próprios reinos africanos que capturavam
membros de reinos ou tribos rivais e vendiam-nos aos europeus. Essa prática
também ressoou, como atestam alguns historiadores, em dada medida, nos
quilombos brasileiros.
Nesse
sentido, a complexidade dos fatos históricos nem sempre pode adequar-se a
anseios políticos. Os estudos históricos precisam dar conta dessa complexidade
e fornecer elementos para compreender o passado e sua relação com o presente.
Entretanto, esse processo precisa ser cuidadoso. O uso de datas comemorativas
como marcos de memória suscita esse tipo de polêmica, que deve ser pensada e
discutida criteriosamente, sem prejuízo nem das reivindicações sociais e,
tampouco, da veracidade dos fatos.
Por Me. Cláudio Fernandes
Pesquisa: Equipe do jornal Folha Verde
Postado por Prof. José Carlos Oliveira